MANIFESTO EM
DEFESA DA APLICAÇÃO INTEGRAL DOS LIMITES CONSTITUCIONAIS AO ENSINO
RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS BRASILEIRAS
Lançado por ocasião da Audiência Pública na ADI 4439 em discussão
no STF
As instituições que ao final
assinam vêm chamar atenção de educadores(as), estudantes, pais,
gestores educacionais, membros do sistema de justiça, movimentos
sociais e sindicais e população em geral para a importância da
Audiência Pública realizada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF),
nesta segunda-feira, dia 15 de junho, no âmbito da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) n. 4439 sobre o ensino religioso em escolas
públicas. Esta é uma oportunidade sem precedentes para a afirmação e
proteção às liberdades de pensamento e de crença no sistema educacional
público, liberdades que são pressupostos para o exercício de todos os
demais direitos fundamentais e que estão na base do Estado democrático
e republicano. Sua garantia é a laicidade estatal, que veda a
colaboração entre Estado e religiões para fins que não sejam públicos
(portanto, não religiosos), enquanto protege as liberdades religiosas e
promove um ambiente social favorável à diversidade, à tolerância e à
plena realização dos direitos humanos de todos.
A ADI, proposta em 2010 pela
Procuradoria-Geral da República (PGR), busca enfrentar um dos
principais entraves à laicidade e ao pleno exercício das liberdades que
decorrem da presença do ensino religioso nas escolas públicas
brasileiras. Fruto de pressão de organizações religiosas no processo
Constituinte, em contraposição à defesa de uma educação pública
integralmente laica protagonizada pelo campo educacional representado
no Fórum em Defesa da Escola Pública, o ensino religioso recebeu
previsão no parágrafo 1º do artigo 210 do texto constitucional de 1988.
Desde então, a forma de oferta e
configuração do ensino religioso nas escolas públicas vem sendo objeto
de intensa discussão, com evidente prejuízo para as liberdades
constitucionais, a diversidade religiosa e os direitos humanos.
Consolidaram-se ao menos duas vertentes de implementação do dispositivo
constitucional que vem extrapolando os limites constitucionais e que,
portanto, merecerão atenção do STF tanto por ocasião da Audiência
Pública como do julgamento da ADI.
A primeira vertente de interpretação
inconstitucional extrapola o próprio ensino religioso enquanto
“disciplina”, ainda que a ele esteja relacionado. Conforme demonstram
estudos promovidos por pesquisadores do campo educacional – alguns dos
quais inscritos na Audiência Pública – e também pela Relatoria Nacional
para o Direito Humano à Educação da Plataforma Brasileira de Direitos
Humanos, a autorização constitucional para o ensino religioso é tomada
como porta de entrada para a violação da laicidade nas escolas
públicas, em atos que vão desde a prática de orações e à adoção de
doutrinas religiosas no tratamento de questões pedagógicas e
disciplinares, chegando a situações de intolerância contra ateus,
população LGBTT e praticantes de religiões não hegemônicas, com
especial prejuízo para as religiões de matriz africana. A abertura
representada pelo ensino religioso nas escolas públicas reforça uma
confusão ainda generalizada nos órgãos públicos e nos servidores, entre
concepções e crenças de âmbito privado e ética pública. Isto cria obstáculos
cotidianos quase intransponíveis à implementação de algumas diretrizes
obrigatórias, como o ensino da história e da cultura africana e
afro-brasileira, de direitos humanos e da diversidade sexual e de
gênero.
A segunda vertente de
interpretação inconstitucional se manifesta na própria aplicação e
regulamentação do ensino religioso nas escolas públicas. Também
baseados em seguidos estudos, podemos concluir que, a despeito das
limitações constitucionais, o comum hoje é a presença do ensino religioso
confessional (ou interconfessional) não facultativo nas escolas
públicas brasileiras. Confessional porque aplicado segundo diretrizes
formuladas pelo campo religioso, em versões explícitas, como no caso do
Rio de Janeiro, mas em geral dissimuladas, na maior parte do País. Este
campo religioso que atua no ensino religioso tem em comum a concepção
de que este “é parte da formação básica do cidadão” (concepção
evidentemente confessional e, portanto, inconstitucional que foi
incluída na LDB pela Lei n° 9.475/97). Não facultativo porque ofertado
de forma “transversal” nas séries iniciais do ensino fundamental
(quando não chega a ser ofertado também na educação infantil e no
ensino médio), porque o comum é a matrícula automática dos estudantes
na disciplina, porque há constrangimentos à não frequência, porque não
há oferta de outras disciplinas optativas no ensino fundamental e
porque, em geral, contabiliza-se o ensino religioso na carga-horária
mínima do ensino público.
Buscando enfrentar tais
inconstitucionalidades, a ADI posiciona-se contra o trecho do acordo
entre o Estado brasileiro e a Santa Sé que prevê “ensino católico e de
outras confissões” na rede pública de ensino do país (artigo 11, §1o,
do Decreto n. 7.107/2010). Pede ainda que o STF interprete o artigo 33
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que determina que o
ensino religioso “é parte integrante da formação básica do cidadão”, no
sentido de proibir o ensino confessional, interconfessional ou
ecumênico, bem como a admissão de professores na qualidade de
representantes de confissões religiosas.
Entendemos que a iniciativa da PGR
é mais do que oportuna, sobretudo porque busca enfrentar os retrocessos
recentes que ameaçam ainda mais a construção de um ambiente público
favorável à tolerância, às liberdade religiosas e às diversidades no
País. O acordo entre o Brasil e a Santa Sé e a declarada intenção de
aplicar o ensino confessional “católico e de outras confissões”, somada
à recente ascensão do conservadorismo religioso e de suas expressões
políticas nos poderes do Estado, não deixa dúvida sobre a relevância do
pronunciamento que se espera do STF. Este, em ocasiões anteriores, como
no julgamento conjunto da ADI 4277 e da ADPF 132, sobre o
reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas, já se posicionou
claramente em favor da laicidade do Estado e da consequente separação
entre concepções privadas dos agentes e interesse público.
Levando em conta as vertentes de
interpretação inconstitucional que estão consolidadas na prática e na
legislação, entendemos que o pronunciamento do STF em favor da ADI 4439
deveria também estabelecer parâmetros para a interpretação tanto dos
limites que a regra da laicidade inscrita no inciso I do art. 19 impõe
à aplicação do §1º do art. 210, ambos da Constituição, como dos limites
inscritos na própria redação deste último. Tais parâmetros negativos ao
ensino religioso são absolutamente necessários ainda que o Supremo
venha a conceder integralmente a pretensão da PGR, pois só com eles
estará assegurado que a decisão será capturada pelos interesses
não-laicos que hegemonizam vários aparelhos do Estado.
Nesse sentido, entendemos que o
STF deveria explicitar na decisão um conjunto de limitações negativas à
oferta do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras,
complementares e assecuratórios da pretensão básica da PGR, tudo com o
objetivo de assegurar a Constituição, as liberdades públicas e a
não-discriminação que ela visa proteger com absoluta centralidade. São
estas as limitações necessárias:
1 – Que nenhum
financiamento estatal seja direcionado a qualquer das formas
confessionais de ensino religioso nas escolas públicas;
2 – Que além de
não se admitir que os professores de ensino religioso sejam
representantes de religiões, como propõe a PGR, não se admita que seja
exigida habilitação específica em ciências da religião ou ensino
religioso, já que os conteúdos relacionados ao ensino religioso não
confessional, como filosofia, história, geografia e ciências sociais,
já podem ser ministrados e compõem a formação básica dos professores
das áreas de ciências humanas;
3 - Que o ensino
religioso nas escolas públicas seja colocado, em nenhuma hipótese, como
alternativa a uma educação ética laica de valores cívicos, cidadania,
liberdades públicas e direitos humanos, e que se declare a
inconstitucionalidade da previsão legal que o classifica como “parte
integrante da formação básica do cidadão” (Lei n° 9.394/96, art. 33,
caput, alterado pela Lei n° 9.475/97);
4 – Que a
disciplina facultativa de ensino religioso não seja contabilizada na
carga-horária mínima nacional estabelecida no art. 31, II, da Lei n°
9.394/96 e na carga-horária obrigatória regulamentada pelos diferentes
sistemas municipais, estaduais e do Distrito Federal;
5 – Que em
respeito à regra da facultatividade não se admita a matrícula
automática como comumente ocorre em relação às demais disciplinas do
currículo do ensino fundamental, requerendo-se dos pais ou responsáveis
que manifestem expressamente a intenção de matrícula;
6 - Que em
respeito à definição constitucional do ensino religioso nas escolas
públicas
como
“disciplina” e à facultatividade, não se admita a oferta transversal no
ensino fundamental ou sua oferta durante os componentes obrigatórios e
universais do currículo escolar.
Distrito
Federal, 15 de junho de 2015.
Assinam este documento
Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação
Atea - Associação Brasileira de Ateus e Agnóstico
Católicas pelo Direito de Decidir
CLADEM- Comitê Latino-Americano e do Caribe para a
Defesa dos Direitos da Mulher,
Conectas Direitos Humanos
ECOS Comunicação em Sexualidade
Geledés – Instituto da Mulher Negra
OLÉ - Observatório da Laicidade na Educação
Plataforma Brasileira de Direitos Humanos (DhESCA
Brasil)
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